terça-feira, 20 de julho de 2010

Pai e filho

Começa.
Tu e eu.
Pai e filho.
Vamos os dois beber um copo à aldeia sobre a serra, fica o carro aberto, não há velhacos em tanta demasia por aqui.
À saída, a surpresa, um pilantra leva apressado do carro uma das carteiras, documentos e papelada que falta faz de tudo o que lá está.
Filho da puta do gaiato.
É um gaiato, filho de ciganos, fujo e apanho-o a custo, uma bofetada bem dada chega para o derrubar da fugida da bicicleta. O rijo levou dinheiro, cartões levou tudo!
Fraco corpo, caiu na corrida da bofetada, tem um osso à mostra, o chão espalha o que é nosso, do puto fica aberta a nova cicatriz que lhe vai lembrar para sempre a quem rouba.
Ouvem-se os ciganos ao fundo a dar o alarme, Bateram no filho do Tói, Mataram o gaiato!
O taberneiro, nada sorridente agora como quando serviu uma média suada, grita em pânico atrás das fitas, Fujam homens, vocês fodem um cigano em terras destas, em menos de um farol a família toda fode o vosso couro.
Não conhecendo o local de passeio para fugir, meu pai liga o carro, eu apanho tudo o que era nosso, cartões papelada notas espalhadas e carteira, fica o ciganito a berrar tal qual um borrego sem mãe, poça de sangue e uns trocos deixados pelo chão, uma gorjeta apressada pelo serviço mal feito, triste quadro.

Mais à frente.
Para-se o veículo para ele recuperar o fôlego e alguma da gasolina tão mal gasta pelo susto e pé a fundo.
Insisto ao meu pai que pago os litros, a culpa da bofetada foi minha, foi força mal medida, ele não discute, contrai-se em discordância e de silencio firme aponta sua posição sobre a minha teimosia.
Meu pai atesta, eu pago, aguardo a preguiça de um funcionário tipo de uma bomba de gasolina no meio do nada.
Se viessem mais pessoas tinha mais pressa.
O lento conta os trocos e a meia nota.
Antes do PUM. Um sexto escondido sentido, olhei a medo para a janela, e um cigano desfaz o crânio do meu pai pelo ar, pinta o carro branco de vermelho vivo.
Meu pai.
Nem pensei no segundo cartucho que uma caçadeira de dois canos tem. Dentro de um segundo corri ao cigano sem fazer presença, levantei a espingarda e tiro ao ar. Segundo PUM, ouve-se o apito longo só para os meus ouvidos.
O cigano nem sabia quem eu era com tanta surpresa, assustado tira uma pistola do cinto, eu fico com uma caçadeira sem tiros que rapidamente foge de encontro ao chão.
Pistola apontada ao ar por quatro mãos, o espanto dele tem menos força que a minha raiva cega.
Ficamos homem a homem encarando o focinho um do outro, ganho eu o punho da arma e o cão, já o cabrão fica com o cano e a bicuda mira no seu estômago.
Nunca pensei de um gatilho ser tão pesado, tão pesado, tão pesado, tão pesado...
e cede.
Ao terceiro PUM, o homem cai e o silencio fica indiferente aos que aconteceu.
Isolado numa serra sozinho para a vida, olho em volta sem saber que pesadelo me trouxe até aqui, espero acordar deste sonho, acordar na minha cama tardiamente num fim de semana, almoçar com meus pais a ver televisão e esquecer tudo o que não aconteceu.
nada disto aconteceu, é só um sonho.
Vou acordar, vou acordar.
E entro na bomba de gasolina, o outrora lento grita, FOI TUDO GRAVADO, Foi tudo gravado!
Mando-o à merda, ele que faça para trás e apague o que aconteceu.
Ele não me entende e vira o televisor para mim, tem o ecrã dividido em duas partes iguais, à esquerda jaz um cigano e meu pai junto a um carro numa estação de gasolina vazia de vida. À direita dentro da casa casa junto ao balcão está o lento de frente a apontar, eu de costas encarando um televisor, dentro desse televisor à esquerda dois homens mortos,  à direita dois homens vivos, o que está de costas encara um televisor, dentro desse televisor estão duas partes, à esquerda dois mortos, à direito dois vivos e um televisor, dentro desse televisor...
...
...
Viro o corpo e uma infinitude de gente viva vira o corpo cada vez mais infinitamente pequenos...
Sobrepõe-se a garganta dorida.
Sobrepõe-se o sabor a cartão.
O escuro.
Acordei.
Quarto em dia de janelas bem fechadas.
Bem vindo a casa.
Será verdade?
Vou chamar meu pai.  

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Sem intenção


Junto á praça principal existe uma igreja, é a igreja mais movimentada da cidade, todos os dias há casamentos, velórios e baptizados, nunca se cruza um casamento com um velório, talvez porque as pessoas nunca casam de noite.
De noite é muito mais sossegado, de noite o choro é abafado, não vá o grito do lamento estender-se até ao nascer do dia.
Junto á igreja existe uma beco, ele vai dar ás traseiras da igreja. Um templo por pequeno que seja, vai criando seus desperdícios, sejam os óleos do baptizados, flores, as velas queimadas ou os papeis de rebuçado que as crianças comem ás escondidas na igreja.
Prazer santificado, conseguir estar calado e sentir o calor de um doce quando todos rezam, uma criança notável esta que parece não bocejar quando cantam o sermão.
Não são muitas as crianças que comem rebuçados na casa do senhor, não são muitas as velas que ardem ou flores que murcham para encher um saco do lixo, o sacerdote esse é preguiçoso, as beatas varrem-lhe a igreja e levam o lixo para casa, as velas as flores e os papeis do rebuçado escondido, cabem ao senhor padre. Leva cerca de uma semana ao senhor padre a encher um saco do lixo, se fosse por ele, levar-lhe ia mais tempo, não são raras as ocasiões que pede ás velhas beatas para levarem o lixo para sua casa, quando lhe perguntam se podem levar ás traseiras da igreja, ele diz que não costumam ir lá buscar o lixo, mesmo sabendo que é mentira, então as senhoras vão buscar o saco que está na Sacristia e levam o saquinho empanturrado todas cheias de orgulho por ajudar o homem de Deus. O dito beco, não é favorável ao senhor padre, ele não gosta de lá ir, ainda que tenha dois enormes contentores, cortesia da câmara municipal, nem padre nem lixeiro lá vão muito.
 O senhor homem do lixo espreita no escuro do dia, se encontra o vulto de um saco, corre a medo e retira o lixo, depois gaba-se aos amigos colegas, não vão ouvir queixas do padre graças á sua coragem. Entre a praça e igreja, há um beco, é tão profundo quanto o edifício que lhe faz sombra, é um sitio sossegado, raras as visitas que trazem vida ao escuro são o padre e o senhor lixeiro.
É um óptimo sitio para se estar, ouve-se ao fundo a multidão de turistas e a alegria do matrimónio, de noite dorme-se melhor, as pessoas nos velórios fazem pouco barulho, talvez para não acordar os mortos. Foi por isso que ele escolheu esse sitio para estar, não para viver, não se vive num beco. Não faz falta a vontade de ninguém, olhar critico ou esmolas vazias de compaixão. Ele escolheu viver ali porque tinha de sair das praças, sair das igrejas, sair dos trabalhos, sair da vida. Então escolheu um sitio para estar. Ninguém excepto o padre ou o o lixeiro visitam o beco de uma igreja, são todos hereges excepto casamentos, baptizados e na hora da morte, mas quando vivos existe um respeito muito grande pela escuridão provocada por uma santa casa. E ali estava ele, sempre relembrando, com medo de encontrar, foi para ali com um simples motivo, ali não incomodava alguém por encontrar ninguém. Eram muitas as caras conhecidas sobre a multidão, eram muitas as ruas sem saber quem encontrar ou quem o podia observar. Fazia-lhe uma certa aflição encontrar numa montra a surpresa de não encontrar a presença que o afligia. Não interessa a quem casa, a quem nasce ou quem morre, os problemas de um velho, mas ao velho interessa sua vida, à tanto tempo desprovido dela, sufocava dentro do destino, sem ar para viver, se não o podia fazer tinha que arranjar uma forma de sair da vida. Foi assim que o fez. Decidiu estar. É um beco esquecido que ninguém quer lembrar ou visitar, ali pode estar, sem vergonha de dormir ou pensar, ele fala sobre sua vida, ele fala do seu passado, ele fala que pensa para si, uma vida de tanto tempo por tão pouco vivida. Estar por estar, não faz diferença aos outros e não o aflige a ele, escondeu-se ali para não mostrar quem realmente era, hoje, não se esconde, já não se procura, faz parte do escuro. Não há caras que lhe tragam aflição, ruas cheias de montras de surpresas, praças cheias de gente sem saber quem lá está. O velho esconde-se lá bem na noite para lembrar que foi esquecido o seu lembrar, todos os dias olha o silencio de quem lhe não fala, afaga a noite pelo cego sentido de não ver mais que breu.
Quando os sinos dobram,
em casamento sorri, foi finalmente feliz.
Quando os sinos dobram,
em baptizado sorri, foi finalmente feliz.
Quando os sinos dobram,
em velório chora, não chegou a sua hora. 
Ao homem que ama, está pela vida sem viver ou sofrer a partir do momento que decide a si que não tem lugar dentro do que deixou em seu passado.
Uma vez por outra grita. 
QUEM VEM LÁ? 
Não é mais que o senhor padre. 
Resmunga irritado por acordado do seu estar, resigna-se então da vida e volta ao seu refugo. 
Desculpe-me senhor padre, pareceu-me ser outra pessoa. 
E quem mais o visita posso perguntar? 
Alguém a quem eu já não posso interessar. Não ligue, coisas de malucos, 
volte à sua vida deixe-me estar.