segunda-feira, 5 de julho de 2010

Sem intenção


Junto á praça principal existe uma igreja, é a igreja mais movimentada da cidade, todos os dias há casamentos, velórios e baptizados, nunca se cruza um casamento com um velório, talvez porque as pessoas nunca casam de noite.
De noite é muito mais sossegado, de noite o choro é abafado, não vá o grito do lamento estender-se até ao nascer do dia.
Junto á igreja existe uma beco, ele vai dar ás traseiras da igreja. Um templo por pequeno que seja, vai criando seus desperdícios, sejam os óleos do baptizados, flores, as velas queimadas ou os papeis de rebuçado que as crianças comem ás escondidas na igreja.
Prazer santificado, conseguir estar calado e sentir o calor de um doce quando todos rezam, uma criança notável esta que parece não bocejar quando cantam o sermão.
Não são muitas as crianças que comem rebuçados na casa do senhor, não são muitas as velas que ardem ou flores que murcham para encher um saco do lixo, o sacerdote esse é preguiçoso, as beatas varrem-lhe a igreja e levam o lixo para casa, as velas as flores e os papeis do rebuçado escondido, cabem ao senhor padre. Leva cerca de uma semana ao senhor padre a encher um saco do lixo, se fosse por ele, levar-lhe ia mais tempo, não são raras as ocasiões que pede ás velhas beatas para levarem o lixo para sua casa, quando lhe perguntam se podem levar ás traseiras da igreja, ele diz que não costumam ir lá buscar o lixo, mesmo sabendo que é mentira, então as senhoras vão buscar o saco que está na Sacristia e levam o saquinho empanturrado todas cheias de orgulho por ajudar o homem de Deus. O dito beco, não é favorável ao senhor padre, ele não gosta de lá ir, ainda que tenha dois enormes contentores, cortesia da câmara municipal, nem padre nem lixeiro lá vão muito.
 O senhor homem do lixo espreita no escuro do dia, se encontra o vulto de um saco, corre a medo e retira o lixo, depois gaba-se aos amigos colegas, não vão ouvir queixas do padre graças á sua coragem. Entre a praça e igreja, há um beco, é tão profundo quanto o edifício que lhe faz sombra, é um sitio sossegado, raras as visitas que trazem vida ao escuro são o padre e o senhor lixeiro.
É um óptimo sitio para se estar, ouve-se ao fundo a multidão de turistas e a alegria do matrimónio, de noite dorme-se melhor, as pessoas nos velórios fazem pouco barulho, talvez para não acordar os mortos. Foi por isso que ele escolheu esse sitio para estar, não para viver, não se vive num beco. Não faz falta a vontade de ninguém, olhar critico ou esmolas vazias de compaixão. Ele escolheu viver ali porque tinha de sair das praças, sair das igrejas, sair dos trabalhos, sair da vida. Então escolheu um sitio para estar. Ninguém excepto o padre ou o o lixeiro visitam o beco de uma igreja, são todos hereges excepto casamentos, baptizados e na hora da morte, mas quando vivos existe um respeito muito grande pela escuridão provocada por uma santa casa. E ali estava ele, sempre relembrando, com medo de encontrar, foi para ali com um simples motivo, ali não incomodava alguém por encontrar ninguém. Eram muitas as caras conhecidas sobre a multidão, eram muitas as ruas sem saber quem encontrar ou quem o podia observar. Fazia-lhe uma certa aflição encontrar numa montra a surpresa de não encontrar a presença que o afligia. Não interessa a quem casa, a quem nasce ou quem morre, os problemas de um velho, mas ao velho interessa sua vida, à tanto tempo desprovido dela, sufocava dentro do destino, sem ar para viver, se não o podia fazer tinha que arranjar uma forma de sair da vida. Foi assim que o fez. Decidiu estar. É um beco esquecido que ninguém quer lembrar ou visitar, ali pode estar, sem vergonha de dormir ou pensar, ele fala sobre sua vida, ele fala do seu passado, ele fala que pensa para si, uma vida de tanto tempo por tão pouco vivida. Estar por estar, não faz diferença aos outros e não o aflige a ele, escondeu-se ali para não mostrar quem realmente era, hoje, não se esconde, já não se procura, faz parte do escuro. Não há caras que lhe tragam aflição, ruas cheias de montras de surpresas, praças cheias de gente sem saber quem lá está. O velho esconde-se lá bem na noite para lembrar que foi esquecido o seu lembrar, todos os dias olha o silencio de quem lhe não fala, afaga a noite pelo cego sentido de não ver mais que breu.
Quando os sinos dobram,
em casamento sorri, foi finalmente feliz.
Quando os sinos dobram,
em baptizado sorri, foi finalmente feliz.
Quando os sinos dobram,
em velório chora, não chegou a sua hora. 
Ao homem que ama, está pela vida sem viver ou sofrer a partir do momento que decide a si que não tem lugar dentro do que deixou em seu passado.
Uma vez por outra grita. 
QUEM VEM LÁ? 
Não é mais que o senhor padre. 
Resmunga irritado por acordado do seu estar, resigna-se então da vida e volta ao seu refugo. 
Desculpe-me senhor padre, pareceu-me ser outra pessoa. 
E quem mais o visita posso perguntar? 
Alguém a quem eu já não posso interessar. Não ligue, coisas de malucos, 
volte à sua vida deixe-me estar.

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