sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Véu

Sobre uma noite fria, no meu quarto sento-me na minha triste cama de casal. De silencio ensurdecedor concentro-me sobre o vazio da minha vida, relembrando o enorme vácuo existencial que me ficou como companhia por séculos atrás.
Aconchego-me por entre lençóis macios, debaixo da tonelada de cobertores, deixo o calor monótono reconfortar-me para mais uma noite de nada até à manhã seguinte, uma rotina de cabelo molhado, café e cigarro pré trabalho.

Não tarda a chegar o manto da inconsciência, leva-me a terras sempre distantes, hoje não é diferente das outras noites, espero como sempre não me lembrar de onde fui, não tem muita importância, é só mais um vazio.

É um sonho, que não se vê muito claro, por isso não deve fazer sentido, vejo através de uma vidraça opaca, quase como se de um vidro embaciado se tratasse.
Por trás de um véu opaco encontra-se uma mulher, tem cabelos encaracolados, tem o cabelo castanho, dourado, tem madeixas louras? Não me perco muito tempo a procurar o cabelo quando reparo perante mim nos pequenos detalhes, como se uma grandiosa tela de um pintor miope fosse desenhada pincelada a pincelada só para mim.
Esta mulher chora, tem os olhos pintados e borrados pelas lágrimas, seus olhos parecem aprofundados pela sua tristeza. Limpa as lágrimas que lhe chegam junto ao pequeno queixo que faz companhia a uns lábios carnudos pintados e borrados como se tivesse tentado libertar-se da sua feminilidade.
Sigo dificilmente as suas lágrimas que caiem sobre um livro que adormece nas suas delicadas mãos. Ela alterna entre o livro e um cigarro poisado sobre o cinzeiro, parece arder à meses, o fumo que a envolve carrega claramente sobre a atmosfera seus pensamentos.

De cada vez que soluça acende um fósforo de mão tremida, eu, sem saber porquê sinto uma pontada no coração por cada gesto repetido.

Parecem passar horas, perco-me por cada virar de página, prolonga-se o mesmo cigarro durante todo o livro.

No final do ultimo capitulo ela apaga o eterno cigarro, começa com as lágrimas secas na sua maquilhagem espalhada a enrolar um cigarro com toda a paciência do mundo.
Termina o ritual beijando o cigarro, acende um ultimo fósforo, este que me queima o coração com a mesma intensidade que ilumina o perfeito cilindro de ponta esfumaçada.
Um fósforo eterno que não desce aos seus dedos, desce na sua mão, ela determinada de cara concentrada observa o livro como se de amor se tratasse, folheia novamente o livro segurando a chama sobre cada ponta de cada página, cada linha vai-se incendiando, letra a letra, palavra a palavra, virgula a virgula ponto final a ponto final, como se o livro esperasse atentamente a sua permissão após ler cada silaba.
Por cada folha que arde elevam-se as cinzas ao cimo do quarto, rodopiando sobre ela como se de corvos se tratassem, diluindo-se a cada hora no tecto. Sofro muito observando o acto, a cada palavra que ela lê e queima, o meu coração despedaça-se gritando em silencio para que tenha piedade, peço-lhe em silencio, grito, bato no vidro, choro e contorço-me de dor, a cada coisa que tento mais me inútil atravessa a minha existência não existente sobre este acontecimento desesperante.

Tento lhe explicar em vão que o amor entre mim, aquele e todos os livros me queima a alma como ela queima cada página, cada parágrafo, cada ponto final, cada vírgula, cada palavra, cada sílaba, cada pedaço de mim. Em vão, como se de minha vida se tratasse, ela a queima.

Acordo.
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De suores frios, acompanhado pela música de assobios do vento lá fora, aconchego-me no desconforto sobre-consciente desta recente companhia metafísica .

Inundo-me sobre eu mesmo ciente de que todo o meu vazio provém do vácuo criado pelo amor, o verdadeiro amor de que todo o não-existir presencia na minha existência. Minha existencia que não se tem para outros, mas para o que outros criaram com carinho.
Sou eu que não era naquele sonho, era a minha vida, meus livros que ela queimava, percebo na minha solidão nesta noite fria que o amor pertence a todas as folhas de todos os livros que li, que não li e que não escrevi.

Sei que o amor não se cria, não se pretende para procura. Não se quer sentir até nos envolver.
Meu amor existe a cada folha escrita, folheada e lida.

Minha existência no vácuo pressente-se pelo vazio do que todos os pretendentes à vida procuram.

Fico-me só, Na ausência de mim.
De ti.
Do amor.