terça-feira, 29 de março de 2011

Resigno

À medida que me deito enregelado
nos meus lençóis frios,
tremo,
é um tremer sujo de um extenso dia comum como todos os restantes comuns,
como todos os que se levantaram de manhã e se deitam à cama,
todos igualmente esperando o amanhecer comum de ir para uma vida comum.

Enrolo-me sobre a minha almofada desgastada e pesadas mantas,
fico só eu e o candeeiro velho de luz amarela,
a luz e um velho livro,
tão velho quanto eu,
tantas vezes o li, como o transportei ao fim do mundo que atravessei.
Abro tal relíquia marcada com um bilhete de comboio esquecido,
não trás surpresa alguma a cor de papel antigo,
embala-me o cheiro que a velha casa de avós trazia em tardes de verão,
linha por linha,
verso a verso,
viajo pelo mundo dos sonhos, sentindo os dedos do poeta a arranhar
com sua rápida caligrafia, letra a letra, trazendo até mim
o sossego de uma extensa vida tão comum quanto eu e todos outros,
tão comum, tão nobre o verso anterior como será maior o seguinte.

Cobre-me com tal calor o sentimento desprendido do poema fingido, que
caio de joelhos perante a minha submissão a tão grande genialidade,
e choro, choro como uma criança perdida da mãe,
choro de raiva perante o génio,
choro de inveja por de minhas mãos comuns iguais às de outro homem tão simples como eu
ter produzido a mais bela versão da vida em tão poucos versos.
Choro, choro por rendição, querendo esquecer todos os belos versos do homem, para um dia eu os escrever.
Sou insuficiente, triste me rendo a tamanha beleza.
São coisas de rapaz, esse que sonha a um dia conseguir transportar sobre o encadeamento das palavras tão bem ordenadas o seu real sentimento, ainda que grite em pulmões rasgando verso atrás de verso seu profundo sentir, o rapaz chora por nunca ter num papel seu sentimento.

Faz de lembrança o cheiro do livro, faz tremer o dia comum que me deita, faz-me chorar o verso seguindo outro verso, cada um descrevendo tudo o que sinto como sempre o quis dizer, como sempre não o consegui, que pouco me importa a luz no quarto mal iluminado.
Sou rapaz comum, de gente comum, em mundo comum, vendo o mundo a passar chorando de inveja perante os homens que viveram sentiram e a nós fazem chorar com simples letras juntas, por regras antigas, cada uma encadeada nas palavras mais belas que o mundo alguma vez já viu.

Deito-me enrolado, em almofada desgastada, amarela de luz tão usada, tal como o livro fico por aqui, fechado sobre mim, relembrando o mundo que vi e não vi, sonhando o que sempre quis ou nem sei poder sonhar, choro perante as paredes velhas, por ser só eu quem minhas mãos soletram, versos mentirosos que nem sentimento fingem.

Oh fosse eu outro que não eu,
outro,
não rapaz para toda a vida,
mas um ser que sabe sentir,
que sabe fazer ver o que é sofrer,
que não se emaranha em parágrafos ou virgulas mal postas.
Sou o que não sou.

Adormeço ouvindo ao fundo a beleza do sentimento relido.
Adormeço esquecendo quem sou,
sonhando o que sempre esqueço.
Esquecendo que sonho.
Vou adormecendo esperando de forma comum,
o amanhecer comum.

"(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)"
Álvaro de Campos, 15-1-1928

E fico sempre impotente, lendo e relendo, revendo estes versos que não sou aqui nada do que previ conquistar.
Fiquei-me
como ele diz
pelo sonhar.

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