sábado, 28 de novembro de 2009

É um presente.

"As cartas caem, rodopiando no pano de lã. Depois umas mãos com anéis nos dedos, vêm apanha-las, arranhando o pano com as unhas. As mãos fazem manchas brancas no pano, têm um aspecto assoprado e poeirento. As cartas continuam a cair, as mãos vão e vêm. Que ocupação esta! Não parece um jogo, nem um rito, nem um hábito. Acho que eles fazem isto simplesmente para encher as horas vagas, mas o tempo é largo de mais, não se deixa encher. Tudo quanto mergulha nele amolece e dá de si. Por exemplo, este gesto da mão vermelha, que apanha as cartas a vacilar, é todo flacidez. Haveria que descosê-lo e transforma-lo. Madeleine dá à manivela do gramofone. Oxalá que não se tenha enganado, que não tenha posto, como no outro dia, a ária da Cavalleria Rusticana. Não! É isto, é: reconheço a música aos primeiros compassos. É um velho rag-time com estribilho cantado. Em 1917 ouvi os soldados americanos assobiá-lo, nas ruas de La Rochelle. Deve ser anterior à guerra. Mas a gravação é muito mais recente. Em todo o caso, é o disco mais velho da colecção, um disco Pathé para agulha de safira. Daqui a nada chega o estribilho: é dele sobretud que gosto, e da maneira abrupta como se lança para a frente, como arribas pelo mar. De momento é o Jazz que está a tocar; não há melodia, só notas, uma míriade de breves sacudidelas: não têm descanso, uma ordem inflexivel fá-las nascer e destrói-as, sem lhes deixar um momento para tomarem fôlego, para existirem por si. Elas correm apressam-se, dão-me, ao passarem de fugida, uma pancada seca, e voltam ao nada. Gostava de as apanhar, mas sei que, se chegasse a agarrar uma só, só me ficaria entre os dedos um som ordinário e sem vida. Tenho de aceitar que morram; essa morte, devo até querê-la: conheço poucas impressões mais ásperas e mais fortes. Começo a reanimar-me, a sentir-me feliz. Por enquanto, não é nada extraordinário, é uma felicidadezinha de Náusea: aparece no fundo da poça viçosa no fundo do nosso tempo - o tempo dos suspensórios cor de malva e dos assentos desencaixados -, é feita de instantes largos e moles que alastram pelas beiras como uma nódoa de gordura. Mal tinha nascido, já estava velha; parece-me que a conheço há vinte anos. Há ainda outra felicidade: fora de mim há aquela faixa de aço, a duração limitada da música que atravessa o nosso tempo de lado a lado, e o recusa, e o rasga com as suas pontas secas e agudas; hà um tempo diferente. «O senhor Randu joga as copas, tu deitas o às.»" (...) "Mais uns segundos, e a preta começará a cantar. Parece-me isso inevitável, tão forte é a necessidade desta música: nada pode interrompê-la, nada deste tempo em que o mundo se afundou; a música cessará por si própria, no momento preciso. Se gosto desta bela voz, é sobretudo por isso: Não é pelo seu volume, nem pela sua tristeza, é que ela é o acontecimento que tantas notas prepararam, de tão longe, morrendo para que ela nascesse. E, todavia, estou inquieto; bastaria tão pouca coisa para fazer parar o disco: uma peça que quebrasse, um capricho do primo Adolphe. Como é estranho, como é comovedor que esta insustentabilidade seja tão frágil! Nada pode interrompê-la e tudo pode quebra-la. Extinguiu-se o último acorde. No curto silêncio que segue sinto intensamente uma mudança, sinto que alguma coisa aconteceu. Silêncio.
Some of these days You'll miss me honey.

O que acaba de suceder é que a Náusea desapareceu."
(...)
"«Jogo!»
Uma voz, destaca-se dum rumor de fundo. É o meu vizinho que fala, o velho encarniçado. As bochechas dele põem uma mancha roxa no couro escuro do espaldar do assento. Atira dum rasgo uma carta para a mesa. A manilha de Ouros.
Mas o homem da cabeça de cão sorri. O parceiro vermelhaço, debruçado sobre a mesa, espia-o de revés, pronto para o ataque.
«Jogo!»
A mão do mais novo surge da sombra, plana um instante, branca, indolente, depois pica de súbito como um milhafre, com o polegar e o indicador, preme uma carta contra o pano. O gordo vermelhaço dá um salto:
«Merda! O gajo corta!»
O perfil do rei de copas aparece entre uns dedos crispados, depois põe-no na mesa de cabeça para baixo, e o jogo continua. Belo rei, que veio de tão longe, cuja saída foi preparada por tantas combinações, por tantos gestos extintos, Ei-lo que desaparece por sua vez, para que nasçam outras combinações e outros gestos, ataques, réplicas, vicissitudes da sorte, uma infinitude de pequenas aventuras.
Estou emocionado; sinto o meu corpo como uma máquina de precisão em descanso. Eu sim, tive verdadeiras aventuras. Não me lembro dos pormenores mas percebo o encadeamento rigoroso das circunstâncias. Atravessei os mares, deixei cidades ficar para trás, e subi os rios ou penetrei pelas florestas, e buscava sempre outras cidades. Possuí mulheres e joguei à pancada com homens, e nunca podia voltar atrás, como um disco não pode girar ao contrário. E tudo isso me levava aonde? A este minuto, a este asento, a esta bolha de claridade, sussurrante de música.
And when you leave-me.

Sim, eu que gostava tanto, em Roma, de me sentar à beira do Tibre; em Barcelona, à noite, de subir e descer muitas vezes as Ramblas; eu, que de perto de Angkor, no ilhéu do Baray de Prah-Kan, vi, à roda da capela dos Nagas, as raízes entrelaçadas duma figueira-da-índia, estou aqui, a viver o mesmo segundo que estes jogadores de manilha, a ouvir uma preta cantar, enquanto lá fora erra a noite indecisa.
O disco parou.
A noite entrou, melíflua, hesitante. Não se vê, mas está presente; turba a luz dos candeeiros. Respira-se no ar qualquer coisa de espesso; é ela. Está frio. Um dos jogadores empurra as cartas em desordem para outro que as emaça. Houve uma que ficou para trás. Não a verão? É o nove de copas. Alguém por fim a apanhou e a dá ao homem com cara de cão.
«Ah! É o nove de copas!»
Bom, vou-me embora. O velho violáceo curva-se sobre um papel a chupar na ponta dum lápis. Madeleine fita-o com um olhar claro e vazio. O mais novo, com o nove de copas na mão, vira-o e revira-o. Meu Deus!....
Levanto-me a custo; no espelho, por cima da cabeça do veterinário, vejo deslizar um rosto que não parece humano.
Daqui a pouco vou ao cinema." A Náusea - Jean Paul Sartre

Mitghefüll

1 comentário:

" disse...

suponho que seja este o dito livro.

assim como suponho que o andes a consumir até ao tutano.